Coluna do Guga: autor de ”gol impossível” dos EUA na Copa de 50 foi símbolo de oposição à ditadura no Haiti

0
19

Na décima primeira edição da ”Coluna do Guga”, assinada pelo jornalista Gustavo Demétrio, o leitor terá análise e opinião sobre uma das histórias de maior impacto que perpassa o futebol dos Estados Unidos, e que também envolve o protagonista Joe Gaetjens, uma Copa do Mundo no Brasil, a seleção inglesa e a ditadura haitiana

Joe Gaetjens

Em 29 de julho de 1950, no Estádio Independência, em Minas Gerais, pela segunda rodada da fase de grupos da Copa do Mundo, a Seleção Norte-americana entrou em campo contra a Inglaterra, que era considerada favorita ao título da competição, e claro, era ”bicho-papão” também contra o US Team.

Jogos Eternos - EUA 1x0 Inglaterra 1950 - Imortais do Futebol
(Seleção Americana de 1950/ Foto: Divulgação)

Antes do confronto direto, os dois selecionados vinham de resultados opostos em suas primeiras partidas no torneio. Os Estados Unidos, em 25 de julho, havia perdido para Espanha por 3 a 1. Os Ingleses venceram o Chile por 2 a 0. As partidas foram válidas pelo grupo B.

Não só por isso a seleção dos três leões era favorita. Eles carregavam o mito da soberania inglesa, como inventores do futebol, com jogadores dos principais times do país na época. Inclusive, devido ao mesmo motivo, não participaram das edições da Copa na década de 30, sendo aquele o primeiro torneio mundial disputado por eles. Além disso, os americanos eram semiprofissionais, atuavam em ligas ainda incipientes na terra do Tio Sam, como a American Soccer League e a Cosmopolitan Soccer League.

A vantagem da Inglaterra era tal, que o jornal Daily Express publicou que ”seria justo a partida começar 3 a 0 para os americanos”.

No entanto, a partir das 18h daquele 29 de julho, perante um público de 10,151 pessoas, a Seleção dos Estados Unidos começou a chocar o mundo. Aos 38 minutos do primeiro tempo, desviando chute de Walter Bahr, Joe Gaetjens entraria para história com um gol que até hoje é considerado o mais importante da seleção na história das Copas, pois foi o lance que deu a vitória contra os inventores deste esporte. E mesmo o time não tendo se classificado e perdido a última partida da fase de grupos, contra o Chile, isso ficou na história.

England suffered sheer HUMILIATION at a World Cup in Brazil | Daily Mail  Online
(Este é o único registo em imagem do gol de Joe Gaetjens que deu a vitória história para os EUA/ Foto: Reprodução/ Daily Mail)

O autor do feito, Joe Joe Gaetjens, foi carregado pelo público e pelos seus companheiros no estádio Independência. Um sucesso efêmero, todavia, afinal a glória foi pouco reconhecida em solo americano, quando aquele time retornou ao país, devido a baixa popularidade do esporte por lá. Os jornais da época, como o New York Times, deram apenas um ou dois parágrafos de espaço para o resultado, que inclusive alguns erraram, por vezes.

Gaetjens, jogador que fez sucesso na American Soccer League em temporadas próximas a Copa e por isso foi convocado ao USNMT, era imigrante, como muitos daquela histórica seleção, que inclusive não conseguiram a cidadania do país, tendo sido sancionados pela FIFA por isso, alguns meses após a disputa do mundial no Brasil. Nascido em 1924, em Porto Príncipe, capital do Haiti, ele era filho de uma importante família da região, conseguindo cedo uma bolsa na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde iniciou sua caminhada no Soccer, mas foi em sua terra natal que, aí sim, se alçou ao estrelato pelo feito na Copa do Mundo de 1950.

Recebido como ídolo no Haiti, Gaetjens chegou a um patamar de fama tão grande que foi ”garoto-propaganda” de empresas como Palmolive e Colgate por lá. Futebolisticamente, chegou a atuar também pela seleção haitiana nas Eliminatórias para Copa do Mundo de 1954, quando pendurou as chuteiras posteriormente.

Todavia, as honras desfrutadas por ele duraram só por alguns anos, até mais precisamente 1958, quando membros de sua família e também amigos pessoais tentaram dar um golpe de Estado no ditador François Duvalier, que havia assumido a presidência do Haiti um ano antes, em meio à acusações de fraude nas eleições populares. Gaetjens, por sua vez, era o menos politizado da família, não participando diretamente de discussões sobre a situação social da região, muito menos sobre as formas como o ditador governava.

”Papa Doc”, como era conhecido Duvalier, comandou com mão de ferro o país da América Central de 1957 a 1971. Alcançou o poder e o apoio de grande parte da população pelo seu prestigio na área da medicina, apostando num discurso ultranacionalista e populista, se valendo de signos da cultura haitiana, como a religião vudu, para ganhar legitimidade e criar um culto à personalidade.

Nos seus 14 anos de ditadura, entre outras coisas, Duvalier se declarou ”presidente vitalício”, matou opositores políticos e criou a temida ”Tonton Macoute”, uma milícia paramilitar que tinha um contingente de homens maior até que o Exército oficial do Haiti. Estima-se que só pelas mãos da sua milícia particular, Papa Doc tenha executado cerca de 150 mil pessoas, segundo as principais organizações humanitárias. Entre essas, estavam parte da família, amigos e próprio Joe Gaetjens.

Em entrevista à reportagem da ESPN Brasileira em 2021, descendentes da família disseram que Joe foi levado ao temido Fort Diamonche, em Porto Príncipe, lugar onde opositores do ditador eram torturados e mortos. O corpo dele nunca foi encontrado, sem nenhum registro palpável do que aconteceu.

Gaetjens foi símbolo de resistência contra uma ditadura, mesmo não tendo participado ativamente de movimentos contra o regime, porque em partes não queria sofrer boicotes em sua carreira no futebol. Ele representa, de alguma forma, todos que pagam com a própria vida por simplesmente terem ideias contrárias a quem está no poder. Além disso, também representa que futebol e política são intrinsecamente ligados, se é que alguém tem dúvida sobre isso.

A história deste herói merece ser recordada sempre, mas principalmente em tempos de escalada autoritária.

* As opiniões inseridas nesse texto não necessariamente refletem o posicionamento do Território MLS.

(Capa: Arte Território MLS)